Como é ser mulher no Pará?
Meninas, mulheres, solteiras, ribeirinhas,
caboclas, ciz, trans, negras, quilombolas, indígenas, parteiras somos a mistura
das três raças, a experiência da aventura humana que fundiu e refundiu a
Amazônia, habitantes de territórios e maretórios, fomos atravessadas por
questões geográficas e sociais, onde a ganância, a impunidade e a pobreza
produzida e reproduzida sustentam a soma de todas as violências, quando a
justiça é cega e historicamente sempre lava as mãos.
O relatório da Assembleia Legislativa do Estado do
Pará sobre a CPI da pedofilia, concluído no ano de 2009, contribuiu
decisivamente para desvelar e desvendar mitos, como o de que o abuso sexual é
praticado por “estranhos”.
Na maioria dos casos relatados, estavam envolvidas
pessoas que têm familiaridade e ascendência direta sobre a vítima: o pai ou
padrasto, o padrinho, o tio, o vizinho, o aconselhador religioso, o professor
ou o médico.
http://www.alepa.pa.gov.br/principal/relatorios
Ainda em 2009 denúncias formuladas pelo Bispo Dom
José Azcona, da Prelazia do Marajó identificam-se denúncias de tráfico de
pessoas, especialmente nos Municípios de Portel e Breves, onde segundo o
religioso ocorriam “atividades intensas que caracterizam a exploração sexual de
crianças e adolescentes através do aliciamento e consequente tráfico
interestadual e internacional”.
O Estado do Pará tem sua origem de desenvolvimento
marcado por investimento em atividades econômicas que não visam à melhoria de
vida da população local, cujos lucros e ganhos são para terceiros (fora da
região), que provocam e precisam do trabalho temporário e de migrantes, que não
investe no recrutamento ordenado e na formação de mão-de-obra local, que
prioriza trabalhadores do sexo masculino, juntando um contingente de homens
trabalhadores sem suas famílias, abriu caminho para o crescimento do mercado de
sexo, organizado por meio da exploração sexual e do tráfico de mulheres,
crianças e adolescentes.
Para além da questão de gênero, questões
econômicas, sociais e falta de oportunidades colocam em risco os direitos
humanos fundamentais das mulheres paraenses.
Sendo flagrante o desaparelhamento do Estado com
relação a sua rede de proteção social, saúde e educação de modo a promover
Direitos Humanos revertendo à lógica da exclusão ou acolhendo vitimizados pelo
flagelo do tráfico, pedofilia, abuso sexual e outras formas de violação de
direitos.
O desenvolvimento da Amazônia Brasileira deve ser
pensado a partir das necessidades, interesses, sendo legitimado por sua
população.
População diversificada e que ocupa um território
de dimensão continental: pequenas agricultoras, ribeirinhas, indígenas,
quilombolas, migrantes de diversos lugares, assentadas, habitantes das
periferias das grandes e pequenas cidades, operárias, desempregadas, mulheres
sobreviventes e não sobreviventes de toda forma de violações.
Rosa Acevedo Marin refletindo sobre o trabalho
escravo e trabalho feminino no Pará (1987) alertava para o fato de que as
especificidades do regime colonial acabavam por impor na Amazônia uma nova
configuração para o mundo do trabalho.
Nela, mulheres viúvas, separadas, abandonadas,
concubinas, escravas ou forras, se viam envolvidas na trama das relações de
produção, pois a necessidade de sustentar a si mesmas e as suas famílias
tornava-se um imperativo que desafiava a lógica patriarcal da organização da
sociedade vigente.
As questões que embaraçam o cenário para defender
os direitos das meninas e mulheres no Pará são reproduzidas com a mesma
violência praticada pelo latifúndio, quem faz a defesa da vida, sofre constantemente
com a ameaça de morte e coloca em risco a própria existência.
A
sociedade, cada vez mais entregue à hipocrisia política e populista daqueles
que estimulam a violência como resposta pública ao medo e ao crime, ignora que
não há lugar seguro para as mulheres em nenhum lugar do Brasil.
A
irmã Doroty Stang, missionária norte-americana, foi assassinada aos 73 anos,
com seis tiros em fevereiro de 2005. Ela era a maior liderança do projeto,
atraindo a inimizade de fazendeiros da região que se diziam proprietários das
terras que seriam utilizadas no projeto.
Dorothy
Stang esteve no Brasil desde 1967, amava tanto o Brasil que se naturalizou
brasileira. Por tudo que trabalhou com os pobres, migrantes, boias-frias,
lavradores, pessoas realmente necessitadas, que não tinham poder nenhum, essas
pessoas a chamavam de “O Anjo da Amazônia”.
Irmã Henriqueta desde 2009 coordena a Comissão de Justiça e Paz da CNBB, trabalha no combate à violência sexual e ao tráfico de pessoas, realizou contribuições importantíssimas para o relatório da CPI da pedofilia da Assembleia Legislativa do Pará.
A irmã Henriqueta Cavalcante já recebeu ameaças várias vezes, inclusive de pessoas perigosas que também tem certa influência, mas tem a consciência tranquila, de pensar que isso tudo é o preço da opção feita, que exerce com muita coragem, consciência, dedicação e sempre avalia que a vida das pessoas é muito preciosa para ser violada.
O dia 25 de abril precisa ser instituído como um dia de Resistência pela vida das mulheres paraenses, seria o reconhecimento do parlamento estadual à luta que realiza bravamente a Irmã Henriqueta e tantas outras mulheres.
Seria o contraponto marcante num dia que a Justiça parauara anula condenação do médico e ex-deputado acusado de estupro de vulnerável.
O caso teve como vítima uma menina de 9 anos, foi anulado por decisão de desembargadores da 3ª Turma do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA).
A defesa do acusado em manobra tardia alegou irregularidade no foro de julgamento, já que à época era deputado estadual e, por isso, deveria ter foro privilegiado, segundo a tese da defesa, não poderia ter sido julgado pela Justiça Comum.
http://www.ver-o-fato.com.br/2019/04/urgente-por-2-votos-1-turma-do-tj-do.html
Ser mulher na Amazônia paraense é estar em constante postura de resistência.
As raízes de um Pará colonizado, androcentrista e machista, onde as elites oriundas da prática do latifúndio e trabalho escravo, depois de tanto tempo, ainda impõe as vestes da invisibilidade das violências, que desqualifica o trabalho do próprio Estado e perpetra a indignidade da impunidade que não tem fim, justiça até existe, infelizmente, tem lado.
Quem denuncia corre sério risco de morte.
A invisibilidade da violência foi herdada enquanto representação social e se mantém ativa através das práticas tradicionais e conservadoras que reservaram à mulher o papel exclusivo de submissão.
Permanece o enorme desafio em garantir que as mulheres em situação de violência de fato tenham acesso à Justiça.
Quando o presidente do Brasil disse que, se alguém “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, demonstra não conhecer, desdenhar e/ou compactuar com as mazelas enfrentadas pelas mulheres que vivem no país e em toda a Amazônia, aqui, essa mistura violenta nossos corpos, tem cheiro de morte e sabota nossa humanidade.
O Sistema de Segurança Pública deve evoluir com conduta que elimine a naturalização da violência como linguagem que em nossos cotidianos dificultam a prevenção e repressão.
Ética, decoro e liturgia pública são conceitos que, para terem alguma representação na prática, devem considerar que cabe ao Poder Público conter as emoções e não aceitar a violência em nenhuma de suas manifestações.
Enfrentar, denunciar é a única forma lúcida capaz de garantir nossas existências. Pelo direito a nossas vidas, somos resistência, seremos assim sempre que preciso for, somos as mulheres que tem coragem, com capacidade de subverter a lógica do poder público que tem falhado todos os dias ao não ser capaz de garantir a vida de milhares de mulheres.
*Angelina Anjos é Assistente Social pela Universidade Federal do Pará, Diretora de Cidadania e Direitos Humanos do Instituto Paulo Fonteles de Direitos Humanos, coordenadora do Fórum Estadual de Direitos Humanos e atualmente organiza junto com o Armazém Memória o Relatório da Comissão da Verdade do Pará.
REFERÊNCIAS
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. Trabalho Escravo e Trabalho Feminino no Pará. Cadernos CFCH, Belém, n. 12, p. 53-84, abril/ junh. 1987.
Publicado no Viomundo
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